A tortura saiu dos porões no Rio de Janeiro.


A tortura saiu dos porões no Rio de Janeiro.
Por Marcos Romão

Grafiteiros agredidos na Saara prestaram depoimento nesta quinta-feira Foto: Caio Barbosa / Agência O Dia

Grafiteiros agredidos na Saara prestaram depoimento nesta quinta-feira
Foto: Caio Barbosa / Agência O Dia

As milícias tomaram conta do centro e da zona sul do Rio de Janeiro. (Nas outras regiões já são donas faz tempo).
Nos últimos meses temos recebido notícias preocupantes, sobre o comportamento da guarda municipal do Rio de Janeiro e seu trabalho conjunto, com seguranças e vigilantes com financiamento privado, em que a maior parte dos engajados são policiais em seus dias de folgas.
Criou-se com isto uma situação em que ninguém mais sabe quem é quem, quando circula de dia ou de noite pelo centro e zona sul da cidade.
Tem duas semanas 2 conhecidos meus, negros, que moram no Flamengo, se depararam com uma situação digna de interior do faroeste.
Os dois voltavam às 4 da tarde de uma caminhada no aterro, quando um carro da guarda municipal, quase os atropelou ao subir na calçada.
Eles reclamaram e a veraneio cheia de homens parrudos, deu marcha ré em direção a eles com os pneus cantando.
Esqueci de dizer, um dos meus amigos tem mais de 50 anos e o outro passa dos setenta e tem dificuldade de caminhar. São de classe média, um trabalhador e outro aposentado.
Depois de escutarem, “o que que tá pegando”, vindo de vozes por trás de cassetetes balançando das janelas da veraneio, resolveram sair pela tangente calados e foram ao comando da guarda dar queixa.
Quando lá chegavam, os “seguranças educados” estavam estacionados na porta. O “chefe” prometeu apurar, apesar dos “guardas” educados estarem ali pertinho e não ser necessário apurar nada, apenas chamá-los.
Meus amigos voltaram para casa com a certeza que estavam diante de um bando de capangas sem comando, e que escaparam de uma boa, por estarem à luz do dia.
Notícias que saem nos jornais são mais desabonadoras ainda. Uma advogada negra é destratada na 5ª DP, por defender uma uma pessoa ameaçada pela “Lapa Presente”. Outro advogado é torturado também na 5ª DP depois de ser “capturado” pela PM e Guarda municipal.
A sensação que todos temos é que o perigo vem exatamente de quem nos deveria proteger do perigo.
Agora temos a tortura escancarada de três jovens (não precisamos nem dizer a cor), filmada e distribuída nas redes sociais via whatsapp, por milicianos, que até agora não temos informações se fazem parte dos quadros da polícia oficial.
Depois do assassinato de 5 jovens com 111 tiros em Costa Barros, uma comissão de negros representantes de entidades negras do RJ, esteve com o governador Pezão para cobrar o controle de sua polícia e suas variantes. Estive também presente.
O governador falou que estava ciente da gravidade da situação e que convocaria a sociedade civil e até o bispo para fazer uma cruzada contra a violência. Já lá se vão semanas e ficamos surdos diante de tanto silêncio por parte das autoridades.
Quem passa no centro do Rio durante o dia, da Uruguaiana até o Saara, e vê guarda municipais, comandados por pessoas em roupas civis, roubando ou achacando camelôs, pois as “apreensões” oficiais não tem controle, chega também à conclusão que o prefeito Eduardo Paes deixou os bichos soltos e também pode imaginar que o que fazem diante de testemunhas durante o dia, deve ser muito mais terrível durante a noite.
Todos os órgãos públicos e privados de segurança dizem que não tem responsabilidade pelas ocorrências de violência de seguranças, vigilantes, pms, milicianos, policiais civis, ou de gente que é tudo isto ao mesmo tempo, ou seja, policial, segurança, vigilante, miliciano e acima de tudo BANDIDO com a proteção e beneplácito do Estado.
Agora tem um vídeo, que pasmem, foi feito por eles, os torturadores mesmos para mostrarem para suas esposas, filhos, parentes e amigos e dizerem:
“Olha aí, minha gente como é divertido o meu trabalho. Olha aí como é gostoso torturar e porrar quem passa pela minha frente. Eu posso matar quem olhar pra minha cara!”.

Tortura durou uma hora Jovens tiveram corpos pintados com tintas spray e foram agredidos com barra de ferro Foto: Reprodução Vídeo

Tortura durou uma hora
Jovens tiveram corpos pintados com tintas spray e foram agredidos com barra de ferro
Foto: Reprodução Vídeo

“Jovem negro suspeito de matar ciclista também tem mãe: Nunca abandonei meu filho, afirma dona Jane.”


Será que estamos diante de mais um caso de pré-condenação, resultado da combinação de inépcia investigativa e preguiça da grande imprensa, em avaliar informações “off” obtidas ao arrepio da lei?

Dona Jane, a “suspeita” e “condenada” por suposto abandono do filho, apareceu. É uma mulher ativa, que luta pelos seus direitos.

Ao seu filho ser preso, o acompanhou no carro de polícia para garantir a sua integridade física, pelos menos até a delegacia.

Dona Jane confirma na entrevista para isabela Vieira, “que o menino cometeu infrações, como roubo de celulares, carteiras e bicicletas, mas não acredita que ele tenha chegado a matar alguém. A catadora conta que as facas encontradas perto da casa deles eram usadas por ela no trabalho. “Falei com o delegado: quero ver as câmeras de segurança [do local]. Se ele não for o culpado, ele não pode pagar. E quero ver as duas testemunhas”, disse. Se for provado o contrário, garante, que não vai “passar a mão na cabeça”.

Dona Jane, mãe, pobre e preta tem os mesmos direitos que qualquer mãe do Brasil. Tem o direito a que o crime que seu filho é acusado seja provado. Tem o direito que seu filho não sofra danos físicos, nem morais durante as investigações e em palavras mais claras que não seja torturado, como já o foi uma vez no DEGASE, para confessar, o que até agora afirmou para a sua mãe e para as autoridades que não fez.

Isabela Vieira, da EBC-Notíciasao contrário do que incorretamente anunciáramos como um FURO do “Correio do Brasil” que republicou a matéria mas “esqueceu” de dar os créditos,  deu um passo ao aprofundar a investigação jornalística. Foi escutar dona Jane Maria da Silva enquanto ela falava no sábado no Fórum Social de Manguinhos. Dona Jane não sabe nem onde o filho está preso, logo ela que tem acompanhado seu filho durante todos estes anos de pobreza e miséria, em que tentou de tudo para educar seu filho, dar-lhe uma formação que a burocracia do Estado nunca permitiu.

Dona Jane precisa de ajuda, seu filho precisa de ajuda, para que tenham o mínimo de proteção cidadã durante este processo.

Nós da Rede Mamaterra e do Sos Racismo Brasil, estamos solidários com dona Jane e seu filho. Que ele tenha o direito a um processo justo e republicano. Como temos assistido nos processos dos maiorais do lava-jato.

Pré-condenação pela imprensa e por interesses políticos que usam da comoção pública de toda esta tragédia, que envolve as famílias tanto da vítima quanto do suspeito, já não é mais admissível no Rio de Janeiro do século XXI.

O jovem suspeito quer tenha cometido o crime ou não, precisa da proteção da sociedade, para que não venha a sofrer novamente tortura no DEGASE, que o Ministério Público está processando por já haver torturado o menor, filho da dona Jane, em passagem anterior pelas suas dependências. Marcos Romão- Editor da Mamapress

Jane Maria Silva, mãe do adolescente suspeito da morte do ciclista Jaime Gold e fundadora do Fórum Social de Manguinhos, diz que tem dúvida sobre a participação do filho no crime---foto:Tânia Rêgo/Agência Brasil

Jane Maria Silva, mãe do adolescente suspeito da morte do ciclista Jaime Gold e fundadora do Fórum Social de Manguinhos, diz que tem dúvida sobre a participação do filho no crime-foto:Tânia Rêgo/Agência Brasil-

Ativista em favela, mãe de suspeito de matar médico nega ter abandonado o filho

Isabela Vieira – Repórter da Agência Brasil Edição: Talita Cavalcante

(Correção de origem da matéria, lamentavelmente atribuída ao Correio do Brasil, que a republicou sem citar a fonte)

Corpo franzino, voz rouca e mãos calejadas. Aos 55 anos, a catadora de latas, papelão e garrafas plásticas Jane Maria da Silva, semianalfabeta, criou sozinha três filhos que têm hoje 25 anos, 23 e 16. Na última semana, viu o caçula estampado nas capas de jornais como suspeito da morte do médico e ciclista Jaime Gold, na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio. Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, lamenta que sua criação e seu trabalho em defesa de políticas públicas na comunidade onde mora, Manguinhos, na zona norte, por mais de dez anos, não tenham impedido as nove anotações criminais em nome do filho. “Não são 15”, ressalta, ao rebater o número divulgado na última semana pela polícia.

Durante o lançamento no sábado da cartilha Manguinhos tem fome de direitos, da organização não governamental Fórum Social de Manguinhos, da qual é fundadora, Jane desabafou. Ela disse que nunca abandonou o filho. Esteve presente todas as vezes em que ele foi internado no sistema socioeducativo e que, quando o adolescente foi apreendido em casa, semana passada, entrou no carro da polícia para garantir a integridade dele até a delegacia.

Para ela, pesam dúvidas sobre a participação do adolescente na morte do ciclista. Jane conta que o jovem estava com amigos no dia do ocorrido, em um tradicional ponto de skate da favela, apesar de relatos de testemunha, segundo a polícia, ligarem o jovem ao crime. “Eu e ele tínhamos visto esta reportagem (sobre a morte do ciclista, na televisão) quarta-feira. Mas ele não teve reação, estava tranquilo e eu estava tranquila. Ainda perguntei: Você tem algo a ver com isso aí?”, disse. “Se ele tivesse, a reação teria sido outra, conheço meu filho”, completou.

Jane confirma que o menino cometeu infrações, como roubo de celulares, carteiras e bicicletas, mas não acredita que ele tenha chegado a matar alguém. A catadora conta que as facas encontradas perto da casa deles eram usadas por ela no trabalho. “Falei com o delegado: quero ver as câmeras de segurança [do local]. Se ele não for o culpado, ele não pode pagar. E quero ver as duas testemunhas”, disse. Se for provado o contrário, garante, “não vai passar a mão na cabeça”.

Facas e tesouras retiradas da casa da mãe do suspeito

Facas e tesouras retiradas da casa da mãe do suspeito

O filho de Jane passou por três internações. Crítica do sistema socioeducativo, a mãe do adolescente cobra atividades profissionais que incluam os jovens no mercado de trabalho. Para ela, todos na faixa etária do filho querem se divertir, cortar e pintar o cabelo, fazer coisas que custam dinheiro. “Esse modelo (de semi-internação), em que o jovem entra na segunda-feira e sai às sextas-feiras, não funciona, o jovem não volta”, destacou.

Para tentar evitar que o filho cometesse atos infracionais, ela conta que matriculou o adolescente no Programa Caminho Melhor Jovem, do governo do estado, cujo o objetivo é promover oportunidades. Mas a iniciativa, financiada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), nunca saiu do papel. “Queria que esse programa fizesse alguma, porque o jovem de bolso vazio vai roubar. Então, com uma ajuda de custo para o lanche, pelo menos, o jovem fica entretido; não vai roubar”, completou. Procurado pela Agência Brasil, o governo do estado ainda não se manifestou sobre do programa.

Ao falar no lançamento da cartilha, que marcou um ano da morte de Johnata de Oliveira Lima, aos 19 anos, Jane negou que tenha abandonado o caçula. “Olha, gente, eu não sei onde meu filho está (em qual unidade). Mas vocês podem perguntar que ele vai dizer quem sou de verdade, que soumãe e pai. Que ele sempre andou comigo, nunca passou fome, sou uma mãe presente”, afirmou.

A atuação de Jane na favela é conhecida desde 2007. Na época, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) previa a desapropriação de casas, entre as quais, o barraco de madeira onde morava. A partir daí, ela integrou associação de moradores, organização em defesa da mulher, da saúde até a formação do Fórum de Manguinhos, que luta contra a violência policial.

Nesse sábado, ao falar do filho, Jane recebeu apoio de Ana Paula Gomes de Oliveira, mãe de Johnata, morto em maio de 2014, com um tiro nas costas por um policial da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) de Manguinhos, deDeyse Carvalho, mãe de André Luis da Silva de Carvalho, morto aos 17 anos, sob tortura, quando cumpria pena no sistema socioeducativo, em 2008, no Rio, e por Débora Maria Silva, coordenadora do Movimento Mães de Maio, de São Paulo.

NOTA DA REDAÇÃO DA MAMAPRESS:

Rebemos de Akemi Nitahara a informação correta da autoria do “FURO” de reportagem da EBC, que através de sua repórter Isabela Vieira, mostrou o outro lado da história até então contada pela grande imprensa, apontando o menor suspeito de matar o médico na Lagoa, com uma pessoa abandonada desde cedo pela mãe;

“Gente, por favor, confere as fontes internas antes de ficar reproduzindo as matérias. Esse furo é da Agência Brasil, a colega Isabela Vieira foi lá ouvir a dona Jane. O Correio do Brasil simplesmente copiou a matéria e “esqueceu” de dar o crédito.” Akemi Nitahara

A cada ação corresponde uma reação ou escreveu não leu, o pau comeu. A nossa complacência com a tortura.


“Levei um pau, porque pisei na bola, doutor…”

por Marcos Romão

Esta é a Carta Magna, ou Constituição que rege a vida dos presos e seus vigias nas prisões e carceragens de delegacias no Brasil. Ultrapassa regimes, pois funciona sem maiores atenções da sociedade civil, tanto na ditadura militar, quanto no regime democrático que vivemos desde as eleições de 1989.

O emaranhado da tortura-foto da internet

O emaranhado da tortura-foto da internet

A “Lei da Cadeia no Brasil”, como é chamada no popular, esta “Carta de Princípios do Universo Prisional”, só não é aplicada em sua forma plena, quando o prisioneiro possue ou pertence a um foro privilegiado.  Assim ela possue parágrafos mais suaves de aplicação de punições internas, nos casos em que o detento tenha um título universitário, pertença ou tenha pertencido aos quadros policiais ou seja do “sistema” prisional, que inclue os parentes de policiais e guardas de presídios, além de seus alcaguetes.

A “lei da cadeia” também é usada de forma atenuada, caso a pessoa presa tenha dinheiro ou amigos influentes lá fora, seja fiho ou filha de alguém, pertença à classe média abastada, ou pertença ao alto escalão da bandidagem.

A “lei atenuada da cadeia”, foi suspensa durante o regime militar, o que provocou protestos no Brasil e no exterior e colocou todo o regime da época em xeque. O choque da opinião pública foi muito grande, quando a classe média brasileira provou também do remédio punitivo, aplicado de forma “normal”, aos chamados “presos comuns”, que são os presos das classes baixas

Caso seja pobre, estes atenuantes também podem ser aplicados, caso o prisioneiro tenha uma família que o acompanhe todos tempo e troque favores com os que mandam na prisão, para que reduzam ao mínimo os constrangimentos físicos sofridos pelo seu parente preso. Veja o caso Miriam França

Nos últimos tempos, ainda que de forma tímida, parentes de presos pobres, em geral negros, têm se utilizado de denúncias nas redes sociais para diminuírem os castigos internos de seus parentes presos.

É ainda uma ação de extremo desespero, em geral usada para salvar vidas, mas com o risco do detento/refém, levar mais pau ainda quando o caso serenar na imprensa, ou ser “entregue às feras” para ser escravo ou morrer em uma “briga” entre detentos.

O termo “ser entregue às feras”,  poderíamos traduzir para o juridiquês, como mandar para uma segunda instância o caso de um prisioneiro que cometer uma falha grave no sistema prisional, que varia de cadeia à cadeia, e funciona em sua aplicação, segundo o humor do carcereiro naquele momento. É assim um artigo com parágrafo único, da lei da cadeia, que paira sob a cabeça de todos os prisioneiros, a todo o tempo.

Ser entregue às feras é a pena máxima, pode significar a morte ou no mínimo uma perpétua, que será cumprida através de prestação de serviços, mesmo depois de sair da cadeia ao cumprir a “pena oficial”. Esta prestação de serviços pode ser o fazer assaltos e pagar um dízimo sob o valor amealhado, ou para pagar à vista, executar alguém que interesse aos donos da cadeia.

Para que o leitor que acha que isto é o normal, já que todo o adulto no Brasil sabe, já ouviu falar ou leu este conjunto de “leis da cadeia” que nunca foram escritos, lembramos os útimos noticiários que acompanhamos das prisões dos colarinhos brancos, com ou sem mochilas, que vemos se repetir nas telas da televisão. Nestes atos de prender alguém podemos ver, que algumas regras da Constituição Brasileira são obedecidas:

1- Buscam o prisioneiro em sua casa depois das 6:00 horas da manhã.

2- O algemam ou não segundo a conveniência

3- Não são escrachados. ( o que significa no ato de prisão em que não ofereceu resistência, que não levam tapa na cara. Não são agarrados pela cabeça e mostrados às câmaras de televisão e dos repórteres etc. e etc.)

4- São encaminhados para exame de corpo delito antes de serem recolhidos ao sistema prisional.

5- Seus depoimentos e interrogatórios podem ser acompanhados por advogados.

6- Não são torturados em nenhum momento no processo de prisão, acautelamento e no cumprimento de pena.

Ao verem toda esta maravilha de modelo de aprisionamento na televisão, as classes baixas são as que agora ficam chocadas, e quem sabe esperançosas, de que um dia a “Lei da Cadeia” seja revogada.

Na “lei da cadeia”,  o parágrafo primeiro é a tortura.

Tortura que pode ser aplicada ou não em toda a sua extensão, dependendo da sorte do suspeito ou condenado.

A aplicação da tortura e seus métodos variam segundo estados, municípios e penitenciárias e delegacias. Dependem dos governadores, muitas vezes dos prefeitos, mas sempre dos diretores e delegados o grau de sua aplicação. Mas são aplicadas em todos os lugares, como ou sem conhecimento das autoridades responsáveis em última instância pela segurança e integridade física de prisioneiros condenados ou suspeitos aguardando processo.

Como pelas convenções nacionais e internacionais, a tortura é considerada um crime contra a humanidade e imprescritível, ela precisa ser aplicada de forma secreta, não dita, não anunciada. Paira entretanto escrita em uma tábua invisível nas portas do “sistema” e seu texto está visível para todos prisioneiros e parentes que se arriscam a visitá-los:

” A cada ação corresponde uma reação. Escreveu não leu, o pau comeu.”

Como a visão comum sobre tortura no Brasil é o prisioneiro estar numa sala com pouca luz, cercado de policiais, sentado em uma cadeira ou pendurado no “pau-de-arara”, sempre com fios elétricos enrolados em suas partes mais sensíveis. As pequenas torturas em nossa cultura brasileira não contam. Assim tanto o policial ou carcereiro torturador como o torturado e seus parentes e toda a sociedade civil acham normal, a aplicação de pequenas mas “sistemáticas torturas”. É a lei não escrita.

Assim podemos afirmar, que todo prisioneiro é torturado, quer sofra a tortura em si, quer não. Perguntemos a qualquer brasileiro, o que ele mais teme caso por algum motivo venha a ser preso, e teremos a resposta, “medo de ser torturado”, o que confirma a tese que agora afirmo neste artigo:

A tortura é regra e não exceção no tratamento do preso comum, em geral este preso é pobre, e/ou preto, e/ou índio, e/ou mulher, ou e/homossexual e/ou pertence a alguma minoria, que não tenha poder de barganha para evitar ser torturado.

Assim podemos enumerar a aplicação, algumas das leis de exceção não escritas, que são usadas ao arrepio da Constituição, quando prendem o tal do “cidadão comum”.

1- Entram sem bater em qualquer hora, de preferência quando estiver dormindo, na casa do suspeito ou condenado.

2- Colocam algemas e na falta, cordas ou o que tiverem às mãos, como fios de eletricide por exemplo.

3- São escrachados. (com ou sem resistência são arrastados e colocados no chão da rua para todo mundo ver, aguardar a reportagem e o transporte, que muitas das vezes é um rabecão. Se houver crianças na casa, farão questão de dar uns tapas na cara do preso amarrado, para dar exemplo às crianças, futuros fregueses).

4- Seus depoimentos e interrogatórios podem acontecer debaixo de violência física ou coação. Defensor público, na maioria das vezes,  só o verá por alguns minutos, na audiência com o juiz, que pode demorar meses para acontecer.

5- O exame de corpo delito será feito depois de “sarados” as ferimentos visíveis ocorridos no ato, ou por gravação de áudio via “smartphone”, como no caso recente da transexual Verônica Bolina, espancada violentamente no segundo distrito de Bom Retiro, São Paulo, que desmentiu ter sido torturada, direto da prisão via “whats´Up”, e disse que está bem e que as amigas não se preocupassem por ela, porque ela apanhou porque mereceu, ou nas suas palavras: ” A cada ação corresponde uma reação.” saiba mais sobre o caso

6- Podem ser torturados a todo momento, no processo de prisão, acautelamento e no cumprimento de pena.

Em um momento em que nossa sociedade vive uma situação de extrema e caótica violência, em que se discute sobre maior segurança nas ruas e lares, construção de mais prisões com puxadinhos para colocar jovens menores de idade junto aos adultos, pergunto se não seria o caso de refletirmos todos sobre a tortura, sua aceitação e disseminação em todo o sistema prisional e toda a sua repercussão na vida diária de todos nós brasileiros.

Se ao observarmos  nas redes sociais, a maioria dos grupos que falam de violência, e pudéssemos entra na cabeça de cada um, para sabermos que punição deva ser dada a um criminoso que lhe tenha molestado, poderíamos ver o desejo de torturar até a morte quem ele considere um facínora.

Assim o faz porque pensa com as vísceras da sobrevivência e o Estado e a imprensa estimulam, e o faz como o prisioneiro violentado pela tortura faz, pois como qualquer ser humano sob tortura, um prisoneiro sob tortura, assim também pensa com suas vísceras, pois não pode reagir ao torturador. Irá então se vingar no primeiro que apareça à sua frente na primeira oportunidade.

Estamos criando feras, dentro das prisões e fora delas.

Ao conversar com algumas pessoas que participaram de linchamentos mortais, elas me reponderam que não estavam lá, que foi um bicho que as possuiu.
É desta outra coisa assustadora e incalculável violência que vive dentro de nós, e que bandidos e policiais se confrontam mais amiúde, é que falo.

Ao conversar com um prisioneiro ainda com as marcas de tortura pelo corpo, só ouvi o auto lamento: “Pisei na bola doutor”. Infelizmente eles a aceitam pois só sabem que isto é a regra.

A tortura que era sistemática, dirigida e brutal durante a ditadura militar.  É agora,  em nosso sistema democrático, sistemática, universal e difusa.

O assunto “tortura” visto como tema discutido pela sociedade “morreu” em 82. De lá para cá, os mesmos que eram torturados nas prisões e delegacias antes de 64, continuam a serem humilhados, violentados, espancados, e torturados e não se toca mais no assunto.

O método racista anterior à 1964 de considerar como não humano, passível de ser tratado à pancada quando preso, que eram os pretos e pobres, se estendeu a outras classes durante a ditadura militar.  

Sua escola e sistematização foi apropriada pelo regime democrático. E o que é pior. Espalhada como uma hidra sua aceitação, a aceitação da tortura se tornou universal nas masmorras medievais segundo um ministro da justiça, e é aplicada agora tanto por policiais como por bandidos. Todos aceitam esta hierarquia do terror.

O que fazer para sair deste espiral de violência e aceitação dela até quando a combatemos?

Falar, é o que recomendo, falar, falar e gritar como falam e gritam as mãe pretas e não pretas ao lado das delegacias na “hora do pau”, sabendo que lá dentro seus filhos não podem gritar.

Elas sabem que seus gritos, “Zé, tou aqui fora, te amo”, são verdadeiros e trazem um fio de ligação e esperança a quem é tratado como coisa e inimigo, que até pela convenção de guerra não é permitido que se trate assim. Precisamos restabelecer este fio de ligação de vida entre todos nós.

Falar e falar, para romper o silêncio que a anistia do cala-boca provocou e se entranhou em nosso comportamento social e nos tornou a todos em cúmplices, das pequenas torturas no sistema prisional, nas esquinas que moramos e lamentavelmente até nas casas de nossos vizinhos, quando ouvimos as mulheres que não gritam mas que saem pela manhã de óculos escuros e passam por nós cabisbaixas carregando seus filhos.

Tortura no cárcere? Denúncia do caso de Verônica Bolina pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais-ANTRA.


Verônica antes da agressão

Verônica algumas semanas atrás. Foto extraída da internet

por Marcos Romão

Verônica Bolina  é transexual. Teve uma discussão com uma vizinha idosa, que segundo versão policial teria sido agredida por Verônica.Verônica matéria ao ser presa

Levada para a carceragem da 2a DP de Bom Retiro. São Paulo, ainda segundo versão policial, ao ser transferida de uma cela para outra, teria mordido e arrancado a orelha de um carcereiro, por razões e situação não esclarecida.

Verônica no pátio

Foto reportagem da Band em que Mõnica é mostrada deitada no pátio da carceiragem e é chamada pela Band de “Traveca Tyson”

As fotos em jornais e TVs, mostram Verônica com marcas de espancamento brutal. Além de ter tido os cabelos raspados, tirando-lhe a identidade pessoal, ter sido colocada seminua no pátio da carceragem, Verôcia teve sua privacidade violada quando as fotos destas brutalidades foram mandadas para a imprensa e redes sociais.

Para a Mamapress e o Sos Racismo Brasil, aconteceram severas violações dos direitos humanos de Verônica Bolina.

Nenhum  crime que porventura tenha cometido não justifica a violência que sofreu por parte de agentes do Estado, que poderá ser classificado como tortura durante investigações isentas.

Muito provavelmente, com já corre em um áudio gravado por Verônica, ela dirá que nunca foi torturada, ou que mereceu ser agredida pelos carcereiros. Nada justifica agressões por parte de agentes de Estado encarregados de guardar e proteger quem está encarcerado. Ao contrários do áudio gravado em circunstâncias contrárias à praxes judiciais, em que Verônica nega ter sofrido torturas, as fotos entretanto, evidenciam que Verônica Bolina foi brutalmente agredida por seus carcereiros.

Segunda a página “A Capa”, a coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo,Heloísa Alves, informa que o áudio foi autorizado pela delegacia devido à comoção que se estabeleceu sobre caso. “O meu objetivo como coordenação foi vir à delegacia, ver se a Verônica estava com a integridade física dela garantida, e ela está. Ver o que aconteceu de fato e eu acompanhei todo o relato dela. O que espero desse Conselho é que restaurem a verdade”.

Ouçam o áudio:

Ainda segundo a página “A Capa”, após escutar os áudios, a militante Bárbara Aires declarou para a imprensa que Verônica não foi ferida apenas pelas agressões e que a integridade dela foi desrespeitada em inúmeros momentos. “Existe uma resolução da Secretaria de Direitos Humanos dizendo que como pessoas trans presidiárias devem ser tratadas. Não pode cortar o cabelo mais, porque já é uma agressão física, psíquica e emocional. Ela foi exposta nacionalmente com os seios à mostra, para ser deslegitimada como mulher. E o rosto daquele jeito é o quê? O papel da polícia não é agredir, não é revidar, é conter e imobilizar uma pessoa que está cometendo um ato infracional”

Tortura é crime contra a humanidade. Não pode mais ser tolerada que seja praticada por agentes do Estado, seja em que circunstância e contra quem for.

Nos associamos à ANTRA neste protesto e na exigência que as autoridades apurem até o fim e punam a todos que tenham praticado este ato de violência contra Verônica Bolina.

Foto de Verônica espalhada na internet, possivelmente por policiais

Foto de Verônica Bolina, espalhada na internet possivelmente por policiais.

CARTA DE REPÚDIO DA ANTRA

Meninas e maninos, a ANTRA através de minha pessoa, assim como de outras afiliadas, estamos acompanhando o caso, ao mesmo tempo em que não tenho medido esforços para denunciar as agressões por ela sofrida.

Acreditem, mesmo tendo circulado algumas dezenas de áudios nada convencionais e nada convincentes, a ANTRA e eu continuamos a insistindo junto a SDH – Secretaria De Direitos Humanos Da Presidência Da República e ao CNCD – Conselho Nacional de Direitos Humanos e Combate a Homofobia – LGBT a ida de uma comitiva a São Paulo para acompanhar os fatos ocorridos, onde eu na qualidade de Presidente da ANTRA e também Conselheira Titular possa está presente.

É inegável que a pessoa que sofreu violência física e psicologística como é o caso dela, esteja moralmente, fisicamente e mentalmente abalada, inclusive disposta a tudo para não sofrer mais violações de seus direitos além dos já sofridos, assim como é inegável que a Policia tenha coagido ela em momentos em que nem a senhora Heloisa Alves e nem ninguém a favor dela esteja perto da mesma!

Eu escutei por diversas vezes os áudios, e confesso que mesmo não estando ao lado dela, dá para sentir o medo estampado, dá para sentir que por trás disso tudo tem uma força maior que a impede de falar a verdade, que atormenta a mente dela, a coagindo a não dizer a verdade sob pena de sofrer mais do que já sofreu e podendo a vir ser alvo e vítima de mais tortura ou coisa pior!

Três coisas precisam serem feitas:

1º Denuncia formal a corregedoria pedindo apuração dos fatos e do porque ela ta tão desfigurada;

2º – Pedir intervenção da Defensoria pública e do Ministério Público para acompanhar os fatos de perto e apresentar as denuncias;

3º – Que uma comitiva imparcial não governo do estado esteja a sós com ela e possa ouvir tudo em particular de modo a deixar claro para ela que nosso objetivo não é prejudicá-la, muito pelo contrário, estamos a favor dela e que ela não está só!

Fora isso tudo, eu Cris Stefanny, fiz contato com Irina Karla na SDH pedindo apoio para que possamos em conetiva ir a SP acompanhar os fatos de perto, depois fiz ligação para a TV BAND para pedir retratação da matéria por eles apresentada no “Brasil Urgente”, falei com o Sr. André, produtor do Programa, a principio parecia que ia haver uma “rinha” entre nós, mas do meio para o fim, nos acertamos no diálogo e em partes concordamos que nada justifica o fato ocorrido com a Trans e as violências a ela atribuídas… Por fim, ele agradeceu pela ligação, após eu explicar que a matéria além de ter sido um desserviço para a sociedade, foi recheada de preconceitos e expôs a travesti através de chavões e palavras chulas como “TRAVECA”,  e ainda ridicularizando a exposição do nome de registro dela e ao se referir a mesma os chamavam de ele!

Ele deixou o whatsapp do programa para contatos: (011) 9994-47007 e também o e-mail: falecombrasilurgente@band.com.br alem do próprio telefone : (011) 3131-1313.

Penso que devemos mandar mensagens pedindo retratação, mas por favor sem agressividades para não perdermos a dignidade, o respeito nem os nossos direitos de reclamar!

cartaz de apoio nas redes sociais

cartaz de apoio nas redes sociais

Januário: MP recorre e pede condenação de 4 réus por tortura no Hipermercado Carrefour


Da Redação da parceira da Mamapress, a Afropress

 

Osasco/SP – O Ministério Público de S. Paulo recorreu da decisão da juíza Márcia de Mello Alcoforado Herrero, da 2ª Vara Criminal de Osasco, que absolveu os seis seguranças, réus no processo por tortura contra o vigilante da Universidade de S. Paulo (USP), Januário Alves de Santana.

A promotora Maria do Carmo Galvão de Barros Toscano quer a condenação de quatro dos seis réus no processo – Edson Pereira da Silva Filho, Marcelo Rabelo de Sá, Luiz Carlos dos Santos e Anderson Serafim Guedes – com base na Lei 9.455/97, por terem torturado o vigilante para que confessasse o roubo do seu próprio carro – um EcoSport. Em relação a Mário Lúcio Soares Moreira Gomes e Dárcio Alves dos Santos, o MP considerou não ter ficado provada a participação de ambos nas torturas.

Também o assistente de acusação do MP, advogado Dojival Vieira, recorreu da sentença da juíza, e pediu a condenação dos seis seguranças e a inclusão do policial José Pina Neto na Lei da Tortura. O policial, ao chegar para atender a ocorrência, tentou convencer Januário a “confessar o crime, sob o argumento de que tinha cara de ter pelo menos três passagens”. Embora tenha sido denunciado no Inquérito por omissão de socorro, O PM, atualmente aposentado, nem chegou a ser formalmente acusado.

O assistente também pediu que o enquadramento dos réus fosse feito com base no art. 1º, inciso I, alíneas “a” e “C” da Lei da Tortura. A alínea “c” trata da motivação racial apontada na fase de investigação. O recurso do Ministério Público e do Assistente de Acusação do MP serão julgados pelos desembargadores do Tribunal de Justiça de S. Paulo em data ainda não definida.

Se condenados, os seguranças poderão pegar de 4 a 10 anos de reclusão e deverão começar a cumprir a pena em regime fechado, “uma vez que se trata de crime equiparado a hediondo, praticado de forma violenta contra a vítima, a qual sofreu lesões de natureza grave, devendo, portanto, ser punido de forma mais rigorosa”, segundo a promotora.

Tortura

O caso ocorreu no dia 07 de agosto de 2009 nas dependências do Hipermercado Carrefour, na Avenida dos Autonomistas, em Osasco. Januário tinha ido fazer compras com a família, como fazia habitualmente, quando foi tomado por suspeito do roubo do próprio carro, perseguido, dominado e levado a um corredor onde foi torturado por cerca de 30 minutos.

Segundo a representante do MP “restou devidamente comprovado durante a instrução criminal que os acusados Edson, Marcelo, Luiz e Anderson, mediante violência e grave ameaça, constrangeram o ofendido [Januário], agredindo-o com o rádio no maxilar, bem como lhe desferindo socos, cabeçadas e coronhadas, causando-lhe intenso forimento físico e mental, com o fim de obterem confissão de crime que acreditavam ter Januário praticado”.

“Ademais, restou indubitavelmente comprovado que, em razão da violência física empregada, a vítima sofreu lesões de natureza grave, conforme laudo pericial de fls. 120 e relatório médico de fls. 348, sendo constatado que Januário sofreu fratura da maxila esquerda, tendo sido submetido a intervenção cirúrgica para a colocação de placa e parafuso”, prossegue a promotora.

Reparação

Segundo o delegado que presidiu a investigação, Léo Francisco Salem Ribeiro, do 9º DP de Osasco, os agressores agiram motivados por “por discriminação racial”. De acordo com o delegado “restou cristalino que Januário Alves de Santana foi submetido a intenso sofrimento físico e mental a fim de obter sua confissão. Angustiante perceber que (o que motivou) a empreitada foi a discriminação racial”, afirma no despacho em que formaliza o indiciamento, que foi juntado ao Inquérito 302/2009. “Os algozes pretendiam humilhar e dilacerar a alma da vítima, pois diziam “cala a boca, seu neguinho (…) Nós vamos te matar de porrada”.

“Santana oscilou em intervalos de lucidez e perda de consciência oriundos da tortura sofrida”, acrescentou o delegado no despacho, apontando “o emprego de violência para obter informação ou confissão, em razão de discriminação racial”, conforme prevê a Lei da Tortura.

No âmbito civil, o vigilante da USP foi indenizado pelo Carrefour em termos considerados satisfatórios em novembro de 2009 – três meses após as agressões. Os valores da indenização não podem ser revelados por conta de cláusula de confidencialidade no acordo extra-judicial que garantiu o ressarcimento.

Veja matéria da TV Record com a reconstituição do caso.

http://noticias.r7.com/videos/policia-faz-reconstituicao-de-crime-de-tortura-e-racismo-em-supermercado-de-osasco-sp-/idmedia/b69f10fe2183fdb38ce8492574d1b52e.html

NOTA DA REDAÇÃO:

Todas as reportagens envolvendo este caso e outros em que o jornalista Dojival Vieira atua como advogado, são de responsabilidade da equipe de jornalistas que integram a Redação da Afropress.

Justiça: 5 anos depois, agressores de Januário respondem por tortura


 

Osasco/SP – Cinco anos dois meses e 26 dias depois, os seguranças que torturam o vigilante da USP, Januário Alves de Santana, 44 anos, tomado por suspeito, por ser negro, do roubo do próprio carro – um EcoSport – se sentarão no banco dos réus no Fórum de Osasco.

A juíza Márcia de Melo Alcoforado Herero, da 2ª Vara Criminal da cidade, que fica na região metropolitana da Grande S. Paulo, marcou o julgamento para esta terça-feira (04/11), às 13h30. Os acusados Edson Pereira Silva Filho, Marcelo Rabelo de Sá, Luiz Carlos dos Santos, Anderson Serafim Guedes, Mário Lúcio Soares Moreira Gomes e Dárcio Alves dos Santos, foram denunciados com base na Lei 9.455/97 – a Lei da Tortura – e podem pegar de 4 a 10 anos de reclusão.

Januário estará representado no julgamento pelo advogado Dojival Vieira dos Santos, que também atua como Assistente de Acusação do Ministério Público.

O caso aconteceu no dia 07 de agosto de 2009, à noite, numa loja do hipermercado Carrefour, na Avenida dos Autonomistas, em Osasco, e teve grande repercussão no Brasil e no exterior.

Em consequência da tortura, Januário teve a prótese arrancada, sofreu fratura em três lugares no maxilar esquerdo, e precisou passar por cirurgia no Hospital Universitário da USP.

Investigação

Por causa do episódio – considerado o mais grave incidente de discriminação e racismo nas relações de consumo já registrado no país – o Carrefour afastou os seguranças, rompeu contrato com a empresa prestadora – a Nacional de Segurança Ltda. – e fez acordo extrajudicial de indenização do vigilante, em valores mantidos em sigilo por uma cláusula de confidencialidade.

O processo com base na Lei da Tortura “por discriminação racial”, foi iniciado depois de uma longa investigação conduzida pelo delegado Léo Francisco Ribeiro Salem, do 9º DP de Osasco. Antes, a Polícia havia tratado a agressão como um caso de “lesão corporal dolosa”, crime com pena de três meses a, no máximo, um ano de detenção. Depois do enquadramento como tortura pela Polícia, o Ministério Público manteve a tortura, porém, entendeu não ter havido a “motivação racial”.

Julgamento

O assistente de acusação, advogado Dojival Vieira, contudo, entende que a denúncia precisa ser aditada (termo técnico jurídico que significa emenda, acréscimo) para que seja considerada a agravante da discriminação racial. O assistente também pedirá que os policiais que atenderam a ocorrência respondam pelo mesmo crime.

Segundo Januário depois da sessão de espancamentos, o PM que comandava a viatura, ainda tentou convencê-lo a confessar que estava roubando sob o seguinte argumento. “Confessa, negão. Você tem cara de ter pelo menos três passagens”.

A Lei da Tortura prevê que “aquele que se omite em face dessas condutas [da tortura], quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos, pena aumentada de um sexto até um terço, se o caso envolve agente público, que também, no caso de condenação, perde o cargo, função ou emprego público e fica proibido de exercê-los “pelo dobro do prazo da pena aplicada”.

Justiça

Os policiais, porém, além de não terem sido denunciados, também não responderam sequer pelo crime de omissão de socorro, conforme prevê o art. 135 do Código Penal, como recomendou o relatório da Polícia que concluiu a investigação.

Cinco anos depois, o vigilante continua trabalhando na USP e morando em Osasco junto com a mulher e os filhos e sonha em se tornar advogado. Ele deve prestar vestibular para um Curso de Direito que pretende cursar no ano que vem e acompanha com expectativa o início do julgamento. “Eu não quero vingança. Só quero que seja feita Justiça”, afirmou.

A banalidade do Mal e o século XXI


EichnmannFilme de Margarethe von Trotta sugere que totalitarismo pode assumir faces “normais” e parece indispensável num cenário de democracia esvaziada e guerra iminente

Por Ladislau Dowbor

O filme causa impacto. Trata-se, tema central do pensamento de Hannah Arendt, de refletir sobre a natureza do mal. O pano de fundo é o nazismo, e o julgamento de um dos grandes mal-feitores da época, Adolf Eichmann. Hannah acompanhou o julgamento para o jornal New Yorker, esperando ver o monstro, a besta assassina. O que viu, e só ela viu, foi a banalidade do mal. Viu um burocrata preocupado em cumprir as ordens, para quem as ordens substituíam a reflexão, qualquer pensamento que não fosse o de bem cumprir as ordens. Pensamento técnico, descasado da ética, banalidade que tanto facilita a vida, a facilidade de cumprir ordens. A análise do julgamento, publicada pelo New Yorker, causou escândalo, em particular entre a comunidade judaica, como se ela estivesse absolvendo o réu, desculpando a monstruosidade.

A banalidade do mal, no entanto, é central. O meu pai foi torturado durante a II Guerra Mundial, no sul da França. Não era judeu. Aliás, de tanto falar em judeus no Holocausto, tragédia cuja dimensão trágica ninguém vai negar, esquece-se que esta guerra vitimou 60 milhões de pessoas, entre os quais 6 milhões de judeus. A perseguição atingiu as esquerdas em geral, sindicalistas ou ativistas de qualquer nacionalidade, além de ciganos, homossexuais e tudo que cheirasse a algo diferente. O fato é que a questão da tortura, da violência extrema contra outro ser humano, me marcou desde a infância, sem saber que eu mesmo a viria a sofrer. Eram monstros os que torturaram o meu pai? Poderia até haver um torturador particularmente pervertido, tirando prazer do sofrimento, mas no geral, eram homens como os outros, colocados em condições de violência generalizada, de banalização do sofrimento, dentro de um processo que abriu espaço para o pior que há em muitos de nós.

Por que é tão importante isto, e por que a mensagem do filme é autêntica e importante? Porque a monstruosidade não está na pessoa, está no sistema. Há sistemas que banalizam o mal. O que implica que as soluções realmente significativas, as que nos protegem do totalitarismo, do direito de um grupo no poder dispor da vida e do sofrimento dos outros, estão na construção de processos legais, de instituições e de uma cultura democrática que nos permita viver em paz. O perigo e o mal maior não estão na existência de doentes mentais que gozam com o sofrimento de outros – por exemplo uns skinheadsque queimam um pobre que dorme na rua, gratuitamente, pela diversão – mas na violência sistemática que é exercida por pessoas banais.

Entre os que me interrogaram no DOPS de São Paulo encontrei um delegado que tinha estudado no Colégio Loyola de Belo Horizonte, onde eu tinha estudado nos anos 1950. Colégio de orientação jesuíta, onde se ensinava a nos amar uns aos outros. Encontrei um homem normal, que me explicava que arrancando mais informações seria promovido, me explicou os graus de promoções possíveis na época. Aparentemente queria progredir na vida. Outro que conheci, violento ex-jagunço do Nordeste, claramente considerava a tortura como coisa banal, coisa com a qual seguramente conviveu nas fazendas desde a sua infância. Monstros? Praticaram coisas monstruosas, mas o monstruoso mesmo era a naturalidade com a qual a violência se pratica.

Um torturador na OBAN me passou uma grande pasta A-Z onde estavam cópias dos depoimentos dos meus companheiros que tinham sido torturados antes. O pedido foi simples: por não querer se dar a demasiado trabalho, pediu que eu visse os depoimentos dos outros, e fizesse o meu confirmando a verdades, bobagens ou mentiras que estavam lá escritas. Explicou que eu escrevendo um depoimento que repetia o que já sabiam, deixaria satisfeitos os coronéis que ficavam lendo depoimentos no andar de cima (os coronéis evitavam sujar as mãos), pois veriam que tudo se confirmava, ainda que fossem histórias absurdas. Segundo ele, se houvesse discrepâncias, teriam de chamar os presos que já estavam no Tiradentes, voltar a interrogá-los, até que tudo batesse. Queria economizar trabalho. Não era alemão. Burocracia do sistema. Nos campos de concentração, era a IBM que fazia a gestão da triagem e classificação dos presos, na época com máquinas de cartões perfurados. No documentário A Corporação, a IBM esclarece que apenas prestava assistência técnica.

O mal não está nos torturadores, e sim nos homens de mãos limpas que geram um sistema que permite que homens banais façam coisas como a tortura, numa pirâmide que vai desde o homem que suja as mãos com sangue até um Rumsfeld que dirige uma nota aos exército americano no Iraque, exigindo que os interrogatórios sejam harsher, ou seja, mais violentos. Hannah Arendt não estava desculpando torturadores, estava apontando a dimensão real do problema, muito mais grave.

Adolf Eichmann em seu julgamento em Jerusalém, (Julho 17, 1961), por Ronald Searle

A compreensão da dimensão sistêmica das deformações não tem nada a ver com passar a mão na cabeça dos criminosos que aceitaram fazer ou ordenar monstruosidades. Hannah Arendt aprovou plenamente e declaradamente o posterior enforcamento de Eichmann. Eu estou convencido de que os que ordenaram, organizaram, administraram e praticaram a tortura devem ser julgados e condenados.

O segundo argumento poderoso que surge no filme, vem das reações histéricas de judeus pelo fato de ela não considerar Eichmann um monstro. Aqui, a coisa é tão grave quanto a primeira. Ela estava privando as massas do imenso prazer compensador do ódio acumulado, da imensa catarse de ver o culpado enforcado. As pessoas tinham, e têm hoje, direito a este ódio. Não se trata aqui de deslegitimar a reação ao sofrimento imposto. Mas o fato é que ao tirar do algoz a característica de monstro, Hannah estava-se tirando o gosto do ódio, perturbando a dimensão de equilíbrio e de contrapeso que o ódio representa para quem sofreu. O sentimento é compreensível, mas perigoso. Inclusive, amplamente utilizado na política, com os piores resultados. O ódio, conforme os objetivos, pode representar um campo fértil para quem quer manipulá-lo.

Quando exilado na Argélia, durante a ditadura militar, conheci Ali Zamoum, um dos importantes combatentes pela independência do país. Torturado, condenado à morte pelos franceses, foi salvo pela independência. Amigos da segurança do novo regime localizaram um torturador seu, numa fazendo do interior. Levaram Ali até a fazenda, onde encontrou um idiota banal, apavorado num canto. Que iria ele fazer? Torturar um torturador? Largou ele ali para ser trancado e julgado. Decepção geral. Perguntei um dia ao Ali como enfrentavam os distúrbios mentais das vítimas de tortura. Na opinião dele, os que se equilibravam melhor, eram os que, depois da independência, continuaram a luta, já não contra os franceses mas pela reconstrução do país, pois a continuidade da luta não apagava, mas dava sentido e razão ao que tinham sofrido.

No 1984 do Orwell, os funcionários eram regularmente reunidos para uma sessão de ódio coletivo. Aparecia na tela a figura do homem a odiar, e todos se sentiam fisicamente transportados e transtornados pela figura do Goldstein. Catarse geral. E odiar coletivamente pega. Seremos cegos se não vermos o uso hoje dos mesmos procedimentos, em espetáculos midiáticos.

Hannah Arendt,  filósofa política alemã de origem judaica (1906-1975)

O texto de Hannah, apontando um mal pior, que são os sistemas que geram atividades monstruosas a partir de homens banais, simplesmente não foi entendido. Que homens cultos e inteligentes não consigam entender o argumento é em si muito significativo, e socialmente poderoso. Como diz Jonathan Haidt, para justificar atitudes irracionais, inventam-se argumentos racionais, ou racionalizadores.1 No caso, Hannah seria contra os judeus, teria traído o seu povo, tinha namorado um professor que se tornou nazista. Os argumentos não faltaram, conquanto o ódio fosse preservado, e com o ódio o sentimento agradável da sua legitimidade.

Este ponto precisa ser reforçado. Em vez de detestar e combater o sistema, o que exige uma compreensão racional, é emocionalmente muito mais satisfatório equilibrar a fragilização emocional que resulta do sofrimento, concentrando toda a carga emocional no ódio personalizado. E nas reações histéricas e na deformação flagrante, por parte de gente inteligente, do que Hannah escreveu, encontramos a busca do equilíbrio emocional. Não mexam no nosso ódio. Os grandes grupos econômicos que abriram caminho para Hitler, como a Krupp, ou empresas que fizeram a automação da gestão dos campos de concentração, como a IBM, agradecem.

O filme é um espelho que nos obriga a ver o presente pelo prisma do passado. Os americanos se sentem plenamente justificados em manter um amplo sistema de tortura – sempre fora do território americano pois geraria certos incômodos jurídicos -, Israel criou através do Mossad o centro mais sofisticado de tortura da atualidade, estão sendo pesquisados instrumentos eletrônicos de tortura que superam em dor infligida tudo o que se inventou até agora, o NSA criou um sistema de penetração em todos os computadores, mensagens pessoais e conteúdo de comunicações telefônicas do planeta. Jovens americanos no Iraque filmaram a tortura que praticavam nos seus celulares em Abu Ghraib, são jovens, moças e rapazes, saudáveis, bem formados nas escolas, que até acham divertido o que fazem. Nas entrevistas posteriores, a bem da verdade, numerosos foram os jovens que denunciaram a barbárie, ou até que se recusaram a praticá-la. Mas foram minoria.2

O terceiro argumento do filme, e central na visão de Hannah, é a desumanização do objeto de violência. Torturar um semelhante choca os valores herdados, ou aprendidos. Portanto, é essencial que não se trate mais de um semelhante, pessoa que pensa, chora, ama, sofre. É um judeu, um comunista, ou ainda, no jargão moderno da polícia, um “elemento”. Na visão da KuKluxKlan, um negro. No plano internacional de hoje, o terrorista. Nos programas de televisão, um marginal. Até nos divertimos, vendo as perseguições. São seres humanos? O essencial, é que deixe de ser um ser humano, um indivíduo, uma pessoa, e se torne uma categoria. Sufocaram 111 presos nas celas? Ora, era preciso restabelecer a ordem.

Um belíssimo documentário, aliás, Repare Bem, que ganhou o prêmio internacional no festival de Gramado, e relata o que viveu Denise Crispim na ditadura, traz com toda força o paralelo entre o passado relatado no Hannah Arendt e o nosso cenário brasileiro. Outras escalas, outras realidades, mas a mesma persistente tragédia da violência e da covardia legalizadas e banalizadas.

Sebastian Haffner, estudante de direito na Alemanha em 1930, escreveu na época um livro – Defying Hitler: a memoir – manuscrito abandonado, resgatado recentemente por seu filho que o publicou com este título.3 O livro mostra como um estudante de família simples vai aderindo ao partido nazista, simplesmente por influência dos amigos, da mídia, do contexto, repetindo com as massas as mensagens. Na resenha do livro que fiz em 2002, escrevi que o que deve assustar no totalitarismo, no fanatismo ideológico, não é o torturador doentio, é como pessoas normais são puxadas para dentro de uma dinâmica social patológica, vendo-a como um caminho normal. Na Alemanha da época, 50% dos médicos aderiram ao partido nazista.

O próximo fanatismo político não usará bigode nem bota, nem gritará Heil como os idiotas dos “skinheads”. Usará terno, gravata e multimídia. E seguramente procurará impor o totalitarismo, mas em nome da democracia, ou até dos direitos humanos.

cópia de publicação na Outras Palavras